PALAVRAS
Contos de uma flama infinita

segunda-feira, fevereiro 17, 2003

8:35 da tarde.
A Janela


1. Fuga


Corria louco pelas ruas, vagabundo, a passos largos, fugitivos, desenfreados. Confundiam-no os cães, os sinais, obstáculos, o mundo, as pessoas, as pedras do passeio, os buracos. Os pássaros que esvoaçavam dolorosos, de telhado em telhado. O lixo, os detritos diários e inconsequentes da existência. Confundiam-no os prédios, as portas, as passadeiras, os tapetes, os elevadores, os polícias armados, as ambulâncias. Corria tresloucado pelas loucas avenidas, pelos becos sem saída, pelas vielas desumanas, pelas alamedas tão aqui e tão distantes. Achava e coleccionava estranheza em cada esquina. Guardava-a, secreta, no sarcófago do estômago. Carregava-a com ele, para toda a parte, por toda a lonjura.

Viajava delirante por uma cidade absurda, por uma vida absurda num mundo absurdo. Decalcava na pele os sorrisos, os olhares, as mãos suadas, os ódios e o frio das pessoas. Desenhava sorrisos falsos que colava aos lábios, que o protegiam, que desdenhavam do planeta inteiro, que ousavam fingir quando tudo fingia ser fingido. Disfarçava raivas com punhais no olhar, matava solidões com conversas banais, trespassava felicidades com pesadelos quotidianos, honrava o amor apaixonado-se por todos os vazios em simultâneo. Maltratava o desprezo com o cinismo ajoelhado dos servos.

Procurava. Olhava. Buscava. Sintetizava cada segundo no seu milésimo e condensava, espremendo, o tempo no seu valor real: um sumo de instantes diluídos e de significado abstracto. Saltava de lugar em lugar, sem prestar atenção ao espaço, ao tempo, à chuva, aos equinócios ou às poças de lama. Nada lhe interessava. Um punhado de transeuntes: eis o que é o mundo. Procurava.

2. Procura


De janela em janela, pela cidade das cores e dos cinzentos, pelas folhas outonais que mais pareciam eternas, pelas calçadas imundas e gastas. De rua em rua, pelos vazios já habituais, pelos destinos repetidos, pelos futuros previsíveis, pelas memórias insignificantes. De rosto em rosto, pelos olhares esgazeados, pelos lábios mortiços, pelas feições indecisas, pelas bocas sonoras, pelas mãos incapazes: procurava. Nos reflexos, nas pegadas, nos perfumes, nas palavras, nas imagens, nos nadas. Em toda a parte.

3. Tu


A janela. Era uma janela que ele queria. Este louco fugitivo, escorregadio, difuso, distante, vagabundo, inodoro, incolor e invisível. Procurava uma janela na cidade. Uma qualquer, mas não uma qualquer. Qualquer uma que fosse a tua. Uma em que estivesses tu. Uma que te mostrasse, que te trouxesse, que te inventasse, que te oferecesse. Uma que provasse que existias. E procurava. Corria: fugindo e procurando.

A fuga e a procura dos loucos não movem o mundo. Mas deixam-no inquieto. Este louco fugia e procurava. E eras tu quem ele procurava. Essa janela que talvez nem existisse. Essa silhueta que talvez nem fosses tu. Esse olhar que talvez nem fosse o teu. Essa hipótese inacabada, deslumbrada. Essa névoa persistente e teimosa que se lhe formara por sobre os dias. Todos os dias.
A obsessão. A janela. Olhava todas as janelas em busca da tua. Olhava e buscava.

4. Janela


Numa rua infinita, num dia esquecido. Talvez fosse outro, este planeta. Numa rua curvada escura. Numa noite imprevisível e escondida. A tua janela. A tua silhueta secreta recortando a luz modorrenta. O teu cabelo alongado e deslizante, preso por um gancho elegante. O teu rosto na sombra da noite, adivinhando-se belo.
Presente: o que acontece agora: o louco abranda o passo. Olha fugidio a janela. Firma os pés com convicção, roda sobre si mesmo, num movimento demorado, quase lânguido. A rua é escura, a noite é fria. Tu não dás por ele. Ele encara-te. Vem despenteado, de olhos semicerrados, testando a veracidade de ti. Finges que não vês. Leva a mão ao bolso, retira de lá um maço de cigarros. Tu olha-lo. Acende um cigarro fixa-te. Distende, com suavidade, os lábios, num sorriso mordaz. Testa a tua lealdade. Provoca-te. Assustas-te. Reconhece-lo.

Esbugalhas os olhos num arrepio descuidado, amas por um instante, temes esse momento, recolhes-te, como uma aragem. Deixas ficar uma pontinha do olhar, tímida, espreitando-o. É tudo muito rápido. Tens medo. Finges. Falsificas os desejos, ignoras os sonhos, armas a guarda, ergues fortalezas, fechas a janela.
Ele não te pode ver. Finges sentir-te segura.
Mas ele pode imaginar-te. O louco fixa a janela, como se te visse ainda. Ele sabe. Sabe-te lá, por detrás da janela, encostada à portada, de frente para a escuridão da sala, de cabeça baixa, sem forças. Sabe-te erguendo, neste momento, o queixo. Sabe-te soltando um suspiro inventado de ponto final. Sabe-te engolindo em seco, desejando que ninguém te ouça fazê-lo. Sabe-te pressionando uma lágrima cabisbaixa, para que ela não se evada. Sabe-te comprimindo os dedos das mãos, como se comprimisses o próprio coração, numa tentativa desesperada de o espremer até... até que o arrepio se esvaia, liquefeito, e que dele mais não reste que uma poça. Como uma poça de suor.
Sangrado.

5. Abandono


Decides-te. Não olharás para trás. Sairás da sala, pé ante pé, mas convicta de que abandonas e não te arrependes. Descalça sobre o soalho encerado, caminhas dois paços em direcção à porta. Está escuro.
Hesitas. Trais-te. Olhas para trás.
Espreitas furtiva, num olhar que esperas ser o último, o rosto daquele louco. Pensas: dois segundos só; dois segundos... Olhas. Mantém-se de pé, fumando um cigarro. Talvez o mesmo. Tem um sorriso encolhido nos lábios, um sorriso de espera. Tal como o olhar.

por
Diego Armés

Julio Costello

Correio 1
Julio

Correio 2
Diego




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