PALAVRAS
Contos de uma flama infinita

segunda-feira, março 03, 2003

9:30 da tarde.

Noturno, trivial passeio


Estou no patamar esperando que minha namorada chegue. Não gosto dela tanto quanto gosto de mim. Suzana é o seu nome. Sei que está comigo porque tenho um belo carro, amigos influentes, casa e situação econômica confortáveis.

Ela é um tanto fútil. Gosta de olhares furtivos e sempre procura, ao seu redor, avistar alguém que possa me substituir. Alguém que valha o quanto pese.

Natália visita-me com freqüência, e de meus amores falo pouco. Tenho uma biografia sentimental bastante confusa - às vezes, escondido, ligo para Carmem.

Carmem! Grito ao encontrá-la. Sinto uma felicidade um pouco fugaz, assim como um champanhe perde suas propriedades ao descanso olvidado - que, ao ser tragado, rememora o fel da situação.

Carmem, Natália e Suzana. Três nomes que não trazem muita inspiração, nada mais que inúteis linhas perdidas na escuridão deste automóvel ou na luz que poderia suscitar felicidade se eu não tivesse tantos inimigos.


Julio Costello



9:29 da tarde.
Glori


Sandra, contenta-te com o pouco que Deus oferece. Pensa que todo instante é único,
necessitas da redenção.

Segue teu caminho procurando limpá-lo em todos os cantos. Partilha tua vida com marido e
filhos... e, se não os possuir, encontre a caridade.

Sandra, escolha melhor conselheiro. Não seja tentada pelo infortúnio ou por mim.
Julio Costello

segunda-feira, fevereiro 17, 2003

8:35 da tarde.
A Janela


1. Fuga


Corria louco pelas ruas, vagabundo, a passos largos, fugitivos, desenfreados. Confundiam-no os cães, os sinais, obstáculos, o mundo, as pessoas, as pedras do passeio, os buracos. Os pássaros que esvoaçavam dolorosos, de telhado em telhado. O lixo, os detritos diários e inconsequentes da existência. Confundiam-no os prédios, as portas, as passadeiras, os tapetes, os elevadores, os polícias armados, as ambulâncias. Corria tresloucado pelas loucas avenidas, pelos becos sem saída, pelas vielas desumanas, pelas alamedas tão aqui e tão distantes. Achava e coleccionava estranheza em cada esquina. Guardava-a, secreta, no sarcófago do estômago. Carregava-a com ele, para toda a parte, por toda a lonjura.

Viajava delirante por uma cidade absurda, por uma vida absurda num mundo absurdo. Decalcava na pele os sorrisos, os olhares, as mãos suadas, os ódios e o frio das pessoas. Desenhava sorrisos falsos que colava aos lábios, que o protegiam, que desdenhavam do planeta inteiro, que ousavam fingir quando tudo fingia ser fingido. Disfarçava raivas com punhais no olhar, matava solidões com conversas banais, trespassava felicidades com pesadelos quotidianos, honrava o amor apaixonado-se por todos os vazios em simultâneo. Maltratava o desprezo com o cinismo ajoelhado dos servos.

Procurava. Olhava. Buscava. Sintetizava cada segundo no seu milésimo e condensava, espremendo, o tempo no seu valor real: um sumo de instantes diluídos e de significado abstracto. Saltava de lugar em lugar, sem prestar atenção ao espaço, ao tempo, à chuva, aos equinócios ou às poças de lama. Nada lhe interessava. Um punhado de transeuntes: eis o que é o mundo. Procurava.

2. Procura


De janela em janela, pela cidade das cores e dos cinzentos, pelas folhas outonais que mais pareciam eternas, pelas calçadas imundas e gastas. De rua em rua, pelos vazios já habituais, pelos destinos repetidos, pelos futuros previsíveis, pelas memórias insignificantes. De rosto em rosto, pelos olhares esgazeados, pelos lábios mortiços, pelas feições indecisas, pelas bocas sonoras, pelas mãos incapazes: procurava. Nos reflexos, nas pegadas, nos perfumes, nas palavras, nas imagens, nos nadas. Em toda a parte.

3. Tu


A janela. Era uma janela que ele queria. Este louco fugitivo, escorregadio, difuso, distante, vagabundo, inodoro, incolor e invisível. Procurava uma janela na cidade. Uma qualquer, mas não uma qualquer. Qualquer uma que fosse a tua. Uma em que estivesses tu. Uma que te mostrasse, que te trouxesse, que te inventasse, que te oferecesse. Uma que provasse que existias. E procurava. Corria: fugindo e procurando.

A fuga e a procura dos loucos não movem o mundo. Mas deixam-no inquieto. Este louco fugia e procurava. E eras tu quem ele procurava. Essa janela que talvez nem existisse. Essa silhueta que talvez nem fosses tu. Esse olhar que talvez nem fosse o teu. Essa hipótese inacabada, deslumbrada. Essa névoa persistente e teimosa que se lhe formara por sobre os dias. Todos os dias.
A obsessão. A janela. Olhava todas as janelas em busca da tua. Olhava e buscava.

4. Janela


Numa rua infinita, num dia esquecido. Talvez fosse outro, este planeta. Numa rua curvada escura. Numa noite imprevisível e escondida. A tua janela. A tua silhueta secreta recortando a luz modorrenta. O teu cabelo alongado e deslizante, preso por um gancho elegante. O teu rosto na sombra da noite, adivinhando-se belo.
Presente: o que acontece agora: o louco abranda o passo. Olha fugidio a janela. Firma os pés com convicção, roda sobre si mesmo, num movimento demorado, quase lânguido. A rua é escura, a noite é fria. Tu não dás por ele. Ele encara-te. Vem despenteado, de olhos semicerrados, testando a veracidade de ti. Finges que não vês. Leva a mão ao bolso, retira de lá um maço de cigarros. Tu olha-lo. Acende um cigarro fixa-te. Distende, com suavidade, os lábios, num sorriso mordaz. Testa a tua lealdade. Provoca-te. Assustas-te. Reconhece-lo.

Esbugalhas os olhos num arrepio descuidado, amas por um instante, temes esse momento, recolhes-te, como uma aragem. Deixas ficar uma pontinha do olhar, tímida, espreitando-o. É tudo muito rápido. Tens medo. Finges. Falsificas os desejos, ignoras os sonhos, armas a guarda, ergues fortalezas, fechas a janela.
Ele não te pode ver. Finges sentir-te segura.
Mas ele pode imaginar-te. O louco fixa a janela, como se te visse ainda. Ele sabe. Sabe-te lá, por detrás da janela, encostada à portada, de frente para a escuridão da sala, de cabeça baixa, sem forças. Sabe-te erguendo, neste momento, o queixo. Sabe-te soltando um suspiro inventado de ponto final. Sabe-te engolindo em seco, desejando que ninguém te ouça fazê-lo. Sabe-te pressionando uma lágrima cabisbaixa, para que ela não se evada. Sabe-te comprimindo os dedos das mãos, como se comprimisses o próprio coração, numa tentativa desesperada de o espremer até... até que o arrepio se esvaia, liquefeito, e que dele mais não reste que uma poça. Como uma poça de suor.
Sangrado.

5. Abandono


Decides-te. Não olharás para trás. Sairás da sala, pé ante pé, mas convicta de que abandonas e não te arrependes. Descalça sobre o soalho encerado, caminhas dois paços em direcção à porta. Está escuro.
Hesitas. Trais-te. Olhas para trás.
Espreitas furtiva, num olhar que esperas ser o último, o rosto daquele louco. Pensas: dois segundos só; dois segundos... Olhas. Mantém-se de pé, fumando um cigarro. Talvez o mesmo. Tem um sorriso encolhido nos lábios, um sorriso de espera. Tal como o olhar.

por
Diego Armés

Julio Costello

sábado, janeiro 04, 2003

5:34 da manhã.
Quadras



Ruidoso, caminho por entre cobras, pedestres e aeroportos. Ouço sons de tambores e sigo-os. Não há calma nem placidez neste momento infinito. Só vejo dor, sorrisos infelizes e memórias de cantos inabitados e jamais vistos por lente humana.

Sofro.

O dia é um ruminante em contradição. Refaz-se a cada rotação, a cada momento enquanto choro choro choro rio rio rio.

Meu amigo tem feições endêmicas. Sonâmbulo, transpõe a cerca, invade as casas e faz amigos em todas.

Eu continuo aqui. Infeliz, sorrindo como um palhaço. Esperando o momento certo para transpor a cerca, invadir casas e fazer amigos.
Julio Costello

domingo, novembro 17, 2002

10:51 da manhã.
Marla



I.


Manhã. O metropolitano e as saídas. É Outono, mas o cheiro mais forte é o da manhã. Cheira a gente. A gente a fingir de fresca. Cheira a pálpebras em sobrecarga e a vontade de descarga. Cheira a champô e a bálsamo. Misturado. As coisas cheiram a algo: mistura. Algures, entre o Outono e o champô e a manhã. Cheira a laca e a homem das castanhas. Também ele cheira a peso de pálpebras. Fumaça.

O homem das castanhas enrola o perfume matinal, euro e meio a dúzia. Muitas dúzias. Dúzias em rebuliço. Dúzias às dúzias, em marés de chegar, em marés de ir embora. Para chegar e para partir. Movimento.

Manhã. As conversas são poucas. A manhã é escassa nas palavras. Aponta o dedo ao autocarro. Stop. Mostra o passe. Não há bons dias. Não há maus dias. Há dias e dias. E dias. Sempre assim. De manhã cheira sempre a manhã, quer seja Outono, Verão ou Inverno. Ou Primavera. No Outono, as manhãs cheiram a manhã e um pouco a Outono. Talvez seja o homem das castanhas com a fumarada ambulante e as ciganas espalhando os trapos pela manta, no chão. Um cigano vende guarda-chuvas. Compra-se um. Já


é Outono. O dia hoje está Novembro. Talvez o guarda-chuva dê jeito. Hoje ainda chove. Outono, sem um grãozinho de chuva, que Outono é?

O autocarro é passageiro. Somos todos autocarro, até à próxima paragem. A avenida. Bela avenida, a pingar orvalhos. Tudo dentro da mesma nuvem.

Talvez me apeteça um café.

Café. Há lugar sentado. Aproveitemos. Junto à janela, a ver a gente lá fora, a ver as poças, os sapatos sujos, os cartuchos das páginas amarelas, os matutinos debaixo do braço. Passo acelerado. Um homem ajeita as luvas de napa preta. Usa chpéu de feltro. Mãos agora nos bolsos da samarra. Acelera o passo. Não há bons dias.

E, entretanto, o café. Quentinho. Um copo de água, por favor. Primeiro cigarro do dia. Adoro a minha cigarreira de prata. Nunca fumo de luvas. Deixa um cheiro estranho.

O café ainda não cheira a um café. Ainda é manhã de mais. Ainda cheira a gente. Cheira a cheiro de lençóis quentes mal disfarçado. O duche não lava nada. Desmaia o calor das fronhas que se nos estampa nas faces e no olhar. Mas somos baços, mesmo assim. O duche não lava o sono, o cansaço. Não lava os dias por começar. Não lava o não querer começá-los.

Pelo meio, o café. Bom café! Apalpa-se o cigarro até


à nervura do filtro. Ao primeiro, mata-se a fome da
noite em jejum. Esmiuçar até ao esófago das nuvens. Apaga-se o cigarro. Última vista da janela. A invasão
das passadeiras. Autocarros extraviados: era mesmo ESSE o destino? Os autocarros atulhados, atestados. As pessoas cheias. Pagar e fugir. Obrigado.

Apontar o destino num canto qualquer da córnea. Desembrulhar uma direcção da amálgama contorcida dos rostos da cidade. Escolhe um. Vamos a isso. Fêmea. Rosto vincado mas suave. Olhar verde forte, como o mar nos dias carpidos pelas mulheres dos pescadores. Não sofre de solidão, denúncia de aliança. Morena. Escolhida. Cabelos longamente negros. Lábios grossos. Escolhida. Bóina à francesa, descaída sobre um dos lados. Castanha. Estranha. Escolhida. Vamos a isso. Move-se sorrateira mas decidida por entre a multidão impressa nas pedras confusas do passeio. Não corre. Discreta, como quem não quer dar nas vistas. Mas dá. Não escapa. Escolhida. O meu destino e o teu, numa manhã que cheira a manhã. É fácil seguir. Acompanhar-lhe as passadas medidas, elegantes. Atravessa a estrada. Atravesso. Escolhida. Apanhada. Vai descer as escadas do metro. Acompanho aproximação quase quase quase quase hesitação escolhida. Não desço.

Quem será? Não desço. Não quero conhecer-te. Medo?! Chama-lhe o que quiseres. Não quero. Sim, talvez seja medo. Talvez prefira imaginar-te, moldar-te o destino e os gemidos das noites quentes. Talvez prefira saber tudo quanto és, por mim. Não por ti. Não desço. Posso reduzir-te o sorriso, secar-te as lágrimas, mexer-te e deixar-te. Prefiro assim. Prefiro não saber quem és.
Imaginar-te, sem me preocupar com isso que és. Posso chamar-te Marla. Ou outro nome. Será que se chamava Marla?


II.



Jardim. Um banco debruçado sobre a manhã. A cidade em baixo. A cidade atrás, ao lado, em cima. A cidade espalhada e reunida em todo o lado, em toda a gente. Os cigarros amolecem as cidades nos bancos de jardim com paisagem. Acendo. Segundo cigarro do dia.

Marla senta-se na carruagem do meio ( tenho a certeza ), no lugar das grávidas e dos aleijados. Uma velha olha-a. Que olhar tão repreensivo! Marla sabe o que pensa a velha. Levanta-se. A velha senta-se. A velha agradece, Marla sorri-lhe. Marla odeia o mundo, agora, um milímetro mais. E odeia a velha. Odeia o metro, o cheiro. Odeia o chiar esganiçado, quase gemido, das carruagens velhas. Odeia o cheiro da manhã e as manhãs que cheiram a Outono. Marla odeia.

Ajeita a bóina no reflexo do espelho improvisado na porta ( de SAÍDA ). Um jovem devora-a de olhar viscoso. Marla inspira. Marla tem calma. Marla não lhe batas. Não odeies, Marla. É a cidade, Marla. Não vale a pena irritares-te. Mas Marla odeia-o.

Aperta a gabardina. SAÍDA, próxima estação. Dispara uma rajada retinal sobre o baixo ventre do jovem, pelo reflexo na porta ( de SAÍDA ). Quem dera que estes olhares fossem balas e a mente pistola. Quem me dera. Estou farta. Marla sai do metro.

Sol do bom, lá sobre a colina do outro lado. A Sé toda reluzente. Parece um grão de areia ao sol, daqueles que brilham numa praia boa de maré de embalar devagarinho. Tudo o resto é o resto de um domingo de praia: gente gente gente gente. Gente a nadar, gente a correr, a gritar, gente a sujar-se, a mergulhar, gente a comer, gente a afogar-se. Gente. Gente a fazer fazer fazer fazer.

Marla viu o sol, mas de fugida. O café foi curto. O queque, a meio caminho andado. Falta meio caminho. O escritório está perto. Há, porém, o elvador que Marla odeia. Marla, hoje, subirá até ao quinto andar pelas escadas. Sim, estou certo. Marla abre a porta, cansada, arfando. O patrão bondia-lhe, mal-disposto. Marla tira com a língua um último pedaço de queque do molar que a constrange. Bondia ao patrão. Engole o pedaço de queque. Senta-se. Na secretária, emoldurada em formato A5, imitação de casquinha, a família. Marido e um filho. Marido normal, igual a outros maridos de Marlas outras. òculos, gravata, pasta na mão direita, blazer de segunda ( é novo lá no escritório, claro ).

O Filho: o filho não se parece com ela. Nada. O filho não é. O filho não pode ser. Filho como os outros, por via graciosa da natureza. Não é. Marla gosta dele, é certo. Marla ama-o como uma mãe de um filho ama um filho, o seu. Mas a verdade de Marla diz: Este filho não é Filho. Marla adoptou-o. Claro. Marla odeia o mundo. E Marla não daria do corpo um fruto seu aos infernos.

Marla é esta: executiva; tem um marido e um filho. Marla poderia ser feliz. Marla poderia ser feliz de tal modo que alguém fosse capaz de a invejar. Sei-o. Marla é invejada. Feliz?!...
O sol aquece. O jardim esperará até amanhã.

A rua alonga-se por entre o costume da cidade: corropio. Um eléctrico estica três miudos da cauda. Uma curva apertada. Não caem. Um dia será o miudo de Marla sobrevoando os carris, mãos seguras à crina férrea do arrepio. Por hora ainda é por demais tenro. Amigos, só os do infantário - que Marla não pode cuidar dele a todas as horas. Marla tem emprego, compras para fazer e coisas para odiar. Não tem tempo para tudo. Um dia, Marla chegará a casa e Miguel, decerto é este o nome do filho ( que não é Filho ), terá crescido. Tanto, que vagueará pendurado em eléctricos veraneantes à carga de turistas. E Marla nem dará conta. Um dia, Marla sentar-se-á no sofá, ao lado do marido que outrora conhecera. Nesse dia há-de contar-lhe os cabelos brancos e há-de demorar tanto tempo a contá-los que se sentirá velha. Gasta. Espreguiçada tantas e tantas vezes. Marla não sabe como o tempo passa. Marla não tem tempo para dar por isso. Mas há quem a inveje. E, se Marla conhecesse esse alguém, havia também de odiá-lo, por certo. Que Marla é uma mulher de rijezas frias e ódios quentes, dauqeles que afloram a pele logo que toca o despertador. Mas Marla nem repara. Marla só se conhece quando se reconhece no espelho e dá conta de que existe. E, quando o faz, pensa: para quê? Sei que assim é. Marla é facilmente imaginável.

Desce-se a rua e cheira-se o paladar húmido do rio. Maré baixa. O odor dos canos e dos ratos trepa, margens acima, mais facilmente. O sol está mais encoberto. Ainda vem a chover, hoje.


por Diego Armés
Julio Costello



10:45 da manhã.
ódio de estimação


I


Adriana teve uma violenta discussão com sua amiga Paula. Indispora-se por a outra ter-lhe roubado o namorado. Adriana, perturbada, não teve muitos argumentos para vencer a traidora. Preferiu ir para a casa trancar-se no quarto para chorar.
Três meses depois, Adriana destilara bem o rancor. Recordava sempre os favores feitos para a outra, a devoção e o segredos contados, blusa de lã emprestada e não devolvida e outros objetos, passando, assim, a odiar sua melhor amiga.
Foi por esse tempo que descobrira sua gravidez. Pensou que melhor álibi não teria para vingar-se. Um filho! Um filho! Dizia radiosa para o espelho enquanto apalpava a barriga.

O namorado seria avisado, acabaria o caso com Paula e tudo voltaria ao normal.

Ao receber, no seu aniversário, um cartão e em anexo o resultado de um exame de gravidez, o namorado de Paula pensou tratar-se de uma brincadeira. Verificou o nome constante do exame e telefonou para Adriana, dizendo não assumir a paternidade.

Chorando, Adriana não teve palavras para contrariar às do telefone.

Paula e o namorado casaram-se seis meses depois, coincidentemente na época em que Adriana estava para dar à luz ao bebê.


II



A floresta está repleta de árvores frondosas. Pássaros cantam alegremente. O rio corre manso e Paula acaricia o marido. Comentam coisas do cotidiano, fazem planos para o primeiro filho. Relembram a história dos dois: Adriana, filho, ameaças e casamento.

Paula diz sentir muito a incompreensão da amiga e que ainda a estima. O marido diz não estar arrependido, que fizera a escolha certa. Beijam-se.

Os espectadores observam Adriana empurrando um carrinho de bebê. No primeiro plano o casal se abraça trocando palavras de amor.

Ana, distraída ao responder uma pergunta à irmã, não percebe quando Adriana dispara três tiros em Paula e dois no ex-namorado. A platéia em alvoroço parece não aprovar o gesto.

Ciro, que não desgrudou os olhos da cena, fica um tanto chocado com o realismo empregado pelo diretor.

Através dos olhos de Juliana a heroína arrasta os corpos até um tronco de árvore, beija-os e os abraça fortemente. Os olhos de Maria José vêem os seios de Adriana ensopados de leite e sangue e, pelos ouvidos de Leandra, ouvimos o choro da criança.

Silvana admira a coragem da protagonista em fingir amamentar a criança com os seios de Paula.

Adriana une os corpos sobre a toalha do piquenique. Despede-se do palco com um olhar perdido, a empurrar o carrinho do bebê. Fecham-se as cortinas.

Julio Costello



10:34 da manhã.
Acordas Manuel


As moscas da rua já não são as borboletas de antigamente. O escárnio dos milhafres, grasnado a horas indecentes, arrepia-te os capilares. Saboreias as palavras dos outros, mas as cócegas que te fazem não te dão para a descontracção. São estas as maravilhas do mundo. Não são sete, são mais. Ou menos. É assim que estas coisas se contam: por aproximação, desaproximação, distanciamento e infinito. É assim que se faz das maravilhas as coisas maravilhosas que elas são.

Acordas Manuel e adormeces manual. Manualmente, como se te masturbasses, mas não o fazes porque és indecente e achas que isso é imoral. Acordas Manuel, para o trabalho, esse ingénuo, ignorante e afável. Adormeces manual, porque sabes como se fazem as coisas da sobrevivência. Não te dá prazer; adormeces imóvel – assim fica a presa quando sabe do predador. Nem tudo isto é peace and love, por assim dizer.

A nudez do espelho lembra-te a podridão da juventude.

Anseias pelo obséquio dos senhores que importam e retribuis com uma lambidela húmida e coerente.

Acordas Manuel, olhas-te ao espelho: sim senhor, confere, Manuel! Adormeces manual, cheio de instruções, indicações, contra-indicações, definições, cifrões, informações, ebulições e irritações.

Andas sozinho e teimoso. O feitio e o formato das ruas não te dão paz ao cerebelo. Tens a mania sensata de concordar com quase tudo. Olhas-te mais uma vez ao espelho, só como quem confirma se ali está, se há ou não. As ternuras do passado são fechaduras borbulhosas em que raras vezes tocas. Tens medo. Desaproximas-te. Levas à boca a malga, afogas o estômago numa zurrapa qualquer, deixas-te aniquilar. Largas-te embriagado.

É tudo tão digital, tão paranormal, tão funcional, às vezes, intelectual. Tu, Manuel, és manual. Nuca te fizeste à estrada. Sonharas um dia ser caixeiro viajante ou vagabundo ou outra espécie de aventureiro. Ter uma mala grande. Levar lá dentro uma mulher boa. Dar-lhe fodas pelo caminho. Mas não. Isso seria indecente. Imoral. Tu és vertical, especial, formal. E és razoável, fiável, inviolável, incansável, até sociável.

Vacilas, incapaz do equilíbrio das aves. É natural.

A mulher é como a pêga. Uma coisa negra e chata que bate a asa quando lhe apetece. Pelo caminho, aspira com o bico o quanto luza. E tu, Manuel, flores, para ti, só das que se cheirem. Entretanto, manual de novo. Faz-se assim o sexo à maneira do solitário. Mas desse não fazes tu, que se te abalam as morais. Logo ouves o rosnar dos deuses, como quem denuncia o pecado.

Vais à igreja aos domingos, conversas com o senhor, contas as maldades da língua, da mente e da tentação que se te ergue no corpo. Escutas a sentença, acenas que sim, que não mais se te erguerá a vontade do pecado, vais em paz e descansado, feliz contigo mesmo. Afastas os pensamentos venosos, largas e deixas cair a memória dos beijos, lá longe, na primeira esquina que te ofereça vida.

As valsas que enxergas no canal porno, finges que não existem. São mentiras que os melros pernoitantes exclamam lá fora no pátio. Encolhes-te. Que vergonha! Tudo mentiras, mas deus vai desconfiar do derrame no lençol do costume. Vai à casa de banho, lava as mãos, esfrega daí a sujidade azeda. È mentira!, diz de novo.

Lês a Bíblia ao jantar, embebedas-te no agridoce dos milagres do salvador, confessas-te ao talher mais próximo, como se o fizesses a um santo: eu, Manuel, sou manual!

Por Diego Armés
Julio Costello

Correio 1
Julio

Correio 2
Diego




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